domingo, 12 de dezembro de 2010

Texto de Outro


 "SRI LANKA, quem sabe? Ela me diz, morena e ferina, e eu respondo por que não? mas inabalável continua: você pode pelo menos mandar cartões-postais de lá, para que as pessoas pensem nossa, como é que ele foi parar em Sri Lanka, que cara louco esse, hein, e morram de saudade, não é isso que te importa?


uma certa saudade: em Sri Lanka, brincando de Rimbaud, que nem foi tão longe, para que todos lamentem ai como ele era bonzinho e nós não lhe demos a dose suficiente de atenção para que ficasse aqui entre nós, palmeiras e abacaxis. Sem parar, abana-se com a capa do disco de Ângela enquanto fuma sem parar e bebe sem parar sua vodka nacional sem gelo nem limão. Quanto a mim, a voz rouca, fico por aqui comparecendo a atos públicos, entre uma e outra carreira, pixando muros contra usinas nucleares, em plena ressaca, um dia de monja, um dia de puta, um dia de Joplin, um dia de Tereza de Calcutá, um dia de merda enquanto seguro aquele maldito emprego de oito horas diárias para poder pagar essa poltrona de couro autêntico onde neste exato momento vossa reverendíssima assenta sua preciosa bunda e essa exótica mesinha de centro em junco indiano que apóia vossos fatigados pés descalços ao fim de mais uma semana de batalhas inúteis, fantasias escapistas, maus orgasmos e crediários atrasados. 
        Mas tentamos tudo, eu digo, e ela diz que sim, claaaaaaaro, tentamos tudo, inclusive trepar, porque tantos livros emprestados, tantos filmes vistos juntos, tantos pontos de vista sócio político artístico filosófico existenciais e bababá em comum só podiam dar mesmo nisso: cama. Realmente tentamos, mas foi uma bosta. Que foi que aconteceu, eu pensava depois acendendo um cigarro no outro, e não queria lembrar mas não me saía da cabeça o teu pau murchos e os bicos do meus seios que nem sequer ficaram duros, pela primeira vez na vida, você disse, e eu acreditei, pela primeira vez na vida, eu disse, mas não sei se você acreditou. Quero dizer que sim, que acreditei, mas ela não pára, tanta tesão mental espiritual moral existencial e nenhuma física, e eu não queria aceitar que fosse isso: éramos diferentes, ai como éramos diferentes, éramos melhores, éramos mais, éramos superiores, éramos escolhidos, éramos vagamente sagrados, mas no final das contas os bicos dos meus peitos não endureceram e o teu pau não levantou, cultura demais mata o corpo da gente, cara, filmes demais, livros demais, palavras demais, só consegui te possuir me masturbando, tinha a biblioteca de Alexandria separando nossos corpos, enfiava fundo o dedo na buceta noite após noite pedindo mete fundo, coração, explode junto comigo, depois virava de bruços e chorava no travesseiro porque naquele tempo ainda tinha culpa nojo vergonha, mas agora tudo bem, o Relatório Hite liberou a punheta. Não que fosse amor de menos, você dizia depois, ao contrário, era amor demais, você acreditava mesmo nisso? 
         Naquele bar infecto onde costumávamos afogar nossas impotências em baldes de lirismo juvenil, imbecil, e eu disse não, o que acontece é que como bons-intelectuais-pequeno-burgueses o teu negócio é homem e o meu é mulher, podíamos até formar um casal incrível, tipo aquela amante de Virginia Woolf, como era mesmo? Vita, Vita Sackville-West e o veado do marido, não se erice, queridinho, não tenho nada contra veados, me passa a vodka, o quê? e eu lá tenho grana pra comprar wyborowas? não tenho nada contra lésbicas, não tenho nada contra decadentes em geral, não tenho nada contra qualquer coisa que soe a: uma tentativa. Peço cigarro e ela me atira o maço na cara, com que joga um tijolo, ando angustiada demais, meu amigo, palavrinha antiga essa, angústia, duas décadas de convívio cotidiano, mas ando, ando, tenho uma coisa apertada aqui no meu peito, um sufoco, uma sede, um peso, não me venha com essas história de atraiçoamos-todos-os-nossos-ideais, nunca tive porra de ideal nenhum, só queria era salvar a minha,v eja só que coisa mais individualista elitista, capitalista, só queria ser feliz, cara. 
        Podia ter dado certo entre a gente, ou não, afinal você naquele tempo ainda não tinha se decidido a dar a bunda, nem eu a lamber buceta, ai que gracinha nossos livrinhos de Marx, depois Marcuse, depois Reich, depois Castañeda, depois Laing embaixo do braço, aqueles sonhos colonizados nas cabecinhas idiotas, bolsas na Sorbonne, chás com Simone e Jean-Paul nos 50, em Paris; 60 em Londres ouvindo here comes the sun here comes the sun, little darling; 70 em Nova Iorque dançando disco-music no Studio 54; 80 a gente aqui, mastigando essa coisa porca sem conseguir engolir nem cuspir fora em esquecer esse gosto azedo na boca. Já li tudo, cara, já tentei macrobiótica psicanálise drogas acupuntura suicídio ioga dança natação Cooper astrologia patins marxismo candomblé boate gay ecologia, sobrou só esse nó no peito, agora o que faço? Não é plágio do Pessoa, mas em cada canto do meu quarto tenho uma imagem de Buda, uma de mãe Oxum, outra de Jesuzinho, um pôster de Freud, às vezes acendo vela, faço reza, queimo incenso, tomo banho de arruda, jogo sal grosso nos cantos, não te peço solução nenhuma, você vai curtir os seus nativos de Sri Lanka depois me manda um cartão-postal contando qualquer coisa como ontem à noite, à beira do rio, deve haver um rio por lá, um rio lodoso, cheio de juncos sombrios, mas ontem na beira do rio, sem planejar nada, de repente, por acaso, encontrei um rapaz de tez azeitonada e olhos oblíquos que. Hein? claro que deve haver alguma espécie de dignidade nisso tudo, ,a questão é onde, ,não nesta cidade escura, não neste planeta podre e pobre, dentro de mim? Ora não me venhas com autoconhecimentos-redentores, já sei tudo de mim, tomei mais de cinqüenta ácidos fiz seis anos de análise, já pirei de clínica, lembra? você me levava maçãs argentinas e fotonovelas italianas, Rossana Galli, Franco Andrei, Michela Roc, Sandro Moretti, eu te olhada entupida de mandrix e babava soluçando perdi minha alegria, anoiteci, roubaram minha esperança, enquanto você, solidário e positivo, apertava meu ombro com sua mão apesar de tudo viril repetindo reage, companheira, reage, a causa precisa dessa tua cabecinha privilegiada, teu potencial criativo, tua lucidez libertária, bababá bababá. 
        As pessoas se transformavam em cadáveres decompostos à minha frente, minha pele era triste e suja, as noites não terminavam nunca, ninguém me tocava, mas eu reagi, despirei, e cadê a causa, cadê a luta, cadê o potencial criativo? Mato, não mato, atordôo minha sede com sapatinhos do Ferro’s Bar ou encho a cara sozinha aos sábados esperando o telefone tocar, e nunca toca, ouvindo samba-canção e blues com caipira de vodka, neste apartamento que pago com o suor do potencial criativo da bunda que dou oito horas diárias pra aquela multinacional fodida. 
        Mas eu quero dizer, e ela me corta mansa, claro que você não tem culpa, coração, caímos exatamente na mesma ratoeira, a única diferença é que você pensa que pode escapar, eu quero chafurdar na dor deste ferro enfiado fundo na minha garganta seca, me passa o cigarro, não estou desesperada, ,não mais do que sempre estive, não estou bêbada nem louca, estou é lúcida pra caralho e sei claramente que não tenho nenhuma saída, não se preocupe, depois que você sair tomo banho frio, lente quente com mel de eucalipto e gin-seng, depois deito, depois durmo, depois acordo e passo uma semana a ban-chá e arroz integral, absolutamente santa, absolutamente pura, absolutamente limpa, depois tomo outro porre, cheiro cinco gramas, bato o carro numa esquina ou ligo para o CVV às quatro da madrugada e alugo a cabeça dum panaca qualquer choramingando coisas do tipo preciso-tanto-de-uma-razão-para-viver-e-sei-que-esta-razão-só-está-dentro-de-mim-bababá-bababá, até o sol pintar atrás daqueles edifícios, não vou tomar nenhuma medida drástica, a não ser continuar, tem coisa mais destrutiva que insistir sem fé nenhuma? 
        Passa devagar a tua mão na minha cabeça, no meu coração, eu tive tanto amor um dia, pára e pede, preciso tanto, tanto, tanto, bicho, não me permitiram, então estendo os dedos e ela fica subitamente pequenina apertada contra meu peito, perguntando se está mesmo muito feia e meio puta e muito velha e completamente bêbada, eu não tinha essas marcas em volta dos olhos, eu não tinha esses vincos em torno da boca, eu não tinha esse jeito de sapatão cansado, e eu repito que não, que está linda assim, desgrenhada e viva, ela pede que eu coloque uma música e escolho o Noturno número dois em mi bemol de Chopin, quero deixá-la assim, dormindo no escuro, sobre este sofá, ao lado das papoulas quase murchas, embalada pelo piano remoto como uma canção de ninar, mas ela se contrai violenta e peded que eu ponha Angela outra vez, então viro o disco, amor meu grande amor, caminhamos tontos até o banheiro onde sustento sua cabeça sobre a privada para que vomite, e sem querer vomito junto, ao mesmo tempo, os dois abraçados, bocas amargas, fragmentos azedos sobre as línguas, ela puxa a descarga e vai me empurrando para a porta, pedindo que me vá, e me expulsa para o corredor dizendo não esqueça então de mandar um cartão de Sri Lanka, aquele rio lodoso, aquela tez azeitonada, que aconteça alguma coisa bem bonita para você, te desejo uma fé enorme, em qualquer coisa, não importa o quê, como aquela fé que a gente teve um dia, me deseja também uma coisa bem bonita, uma coisa qualquer maravilhosa, que me faça acreditar em tudo de novo, que nos faça acreditar em todos de novo, que leve para longe da minha boca esse gosto podre de fracasso, de derrota sem nobreza, não tem jeito, companheiro, nos perdemos no meio da estrada e nunca tivemos mapa algum, ninguém dá mais carona e a noite já vem chegando. 
        A chave gira na porta. Preciso me apoiar contra a parede para não cair. Atrás da madeira, misturada ao piano e à voz rouca de Angela, nem que eu rastejasse até o Leblon, consigo ouvi-la repetindo que tudo vai bem, tudo continua bem, tudo muito bem, tudo bem. Axé, axé, axé! eu digo e insisto, até o elevador chegar. Axé, odara!"


   Os Sobreviventes
- Caio Fernando de Abreu

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